Arnaldo Baptista: o homem que engarrafou a Coimbra dos Laranjais - Notícia da Coimbra Coolectiva
Chama-se citrosidra e é a nova «menina dos olhos» do fundador da Praxis. Uma importante parte da história de Coimbra tem impregnado o aroma da laranja e o cervejeiro resolveu fazer com que pudéssemos bebê-la.
Eram seis da tarde quando entrámos no bar. Primeira semana de Agosto, muito calor e aquela brisa quente não ajuda, tal como não ajuda o facto de estarmos numa missão de trabalho enquanto boa parte dos presentes parece de férias. Percebemos olhares esquisitos para a máquina fotográfica e o gravador pousados em cima da nossa mesa. O salão do Restaurante, Museu e Fábrica de Cerveja Praxis, na margem esquerda do Mondego, estava bem composto e, na mão de todos, unanimidade: cerveja. Muita cerveja. De todos, menos na nossa, onde dois copos de sidra bem fresca destoavam das douradas Ipa, Pilsner e Weiss. Só que a nossa também não era uma bebida qualquer, era a história da Coimbra dos Laranjais engarrafada e transformada em citrosidra.
A sidra é uma bebida alcoólica preparada com sumo fermentado de maçã e a sua trajetória está encharcada de história. O shekar aparece em documentação hebraica primitiva, traduzido pelos gregos como sikera: bebida fermentada. Da mesma família vem então a sidra (em português e espanhol) e ainda a palavra francesa cidre e a inglesa cider. Historiadores apontam os romanos como os responsáveis pelo desenvolvimento da bebida em toda a Grã-Bretanha, Normandia, País Basco e Astúrias, lugares que figuram hoje como os pontos cardeais da rota mundial desta bebida.
Já a CitroSidra leva doses de laranja e maçã em paridade e a laranja funciona como corpo e vida à maçã: «Na minha cabeça, esta bebida germinou em 2013 e tomou forma no âmbito da minha dissertação de mestrado em Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade, da Universidade de Coimbra, com o título Contributo para o Desenvolvimento de uma bebida fermentada inovadora. A cerveja continua a ser a rainha e senhora desta casa, mas há alguns meses nasceu a menina dos meus olhos», diz Arnaldo Baptista, criador da bebida, empresário e fundador da Praxis, que defendeu a sua tese em 2016.
A bebida inovadora foi lançada há um ano pela Praxis, mas contou com a colaboração da Escola Superior Agrária de Coimbra – ESAC, que participou do desenvolvimento inicial do produto realizado nos anos de 2014 e 2015. Arnaldo diz que colocou dentro da garrafa da citrosidra um elemento sociocultural que o sacia: «O meu propósito é disponibilizar um vínculo de divulgação cultural do que foi a Coimbra dos Laranjais e confrontar as pessoas com esta narrativa que, ao lado de outros tesouros históricos, vão caindo no esquecimento desta nossa Lusa-Atenas.»
O estudo de Baptista percorreu o tempo em que a cidade elevava Portugal como uma espécie de reino cítrico. Precursora do aperfeiçoamento da laranja, Coimbra melhorou o fruto que nasceu azedo: «A laranja foi trazida da China para a Europa pelos portugueses no século XVI e aqui foi aperfeiçoada num cruzamento com o polmelo, uma espécie de marmelo, que servia de cavalo – que é como se chama a raiz do caule para o enxerto, tecnologia nascida nos ensinamentos das nossas famílias produtoras de viveiros de citrinos que, até hoje, abastecem com as mudas melhoradas os pomares do Algarve e Setúbal», explica o idealizador.
Esta laranja, nascida e criada em Coimbra, viajou para bem longe e chegou ao Brasil, fazendo dele o maior produtor global de laranja, segundo a Food and Agriculture Organization. Este período da História ficou cristalizado nas várias formas que o nome de Portugal é usado para designar a fruta: na Grécia, a laranja é chamada de portokali; já na Turquia e Bulgária diz-se portukal; e na Roménia, se queres uma laranja, pedes uma portocala. Seguindo no mapa, em língua persa, falada no Irão, no Afeganistão e em países como a Arménia, a Geórgia ou o Iraque, mas também em árabe, a palavra Portugal significa laranja.
A laranja conimbricense também aconchega um dos pratos mais famosos da região: o Leitão à Bairrada que é degustado sobretudo em ocasiões festivas. Há quem diga que o documento mais antigo que refere esta iguaria é uma receita conventual de 1743, provavelmente do Mosteiro do Lorvão ou do Mosteiro da Vacariça. Outros vão mais além e acreditam que o prato tem origem na civilização romana. O certo é que um Leitão à Bairrada só vem para a mesa (muito bem) acompanhado de uma laranja fatiada que, apesar de interferir com o sabor do leitão, tem uma função adstringente e também reduz parte da absorção de gorduras – um par perfeito.
Arnaldo vinca que o seu projeto faz também uma chamada de atenção à pressão urbanística: «Testemunhei o avanço das construções nos espaços verdes que eram ocupados pelos laranjais e como as pessoas foram sendo expropriadas desses terrenos que deram lugar às novas construções. Como empresário, questionei esse período de forma prática, cultivando 14 hectares – sete de laranja e sete de maçã – de pomares em Vila Verde, Lamarosa, no Distrito de Coimbra, para parte da produção da CitroSidra, pois não somos auto-suficientes, vamos ter sempre que comprar os dois frutos fora da nossa produção.»
O futuro da CitroSidra é sair da garrafa e ocupar uma estrutura que vai permitir visitas especiais aos pomares e laranjais, assim como ao local de lavagem e prensagem das frutas para a produção do mosto que depois é fermentado. «Este lugar vai permitir às pessoas entender toda a cadeia de produção da bebida numa experiência que aguçará o convívio de pessoas que queriam comprometer-se um pouco mais com esta história. «Quando anunciei a CitroSidra, guardei um «elogio» de alguém que disse: «Lá vem mais uma idiotice do Baptista». Mas eu sou um teimoso e quero levar esta bebida até onde eu tenha a capacidade de honrar o compromisso de a levar», revela Arnaldo.
Com um ingrediente histórico, Coimbra está a mudar a receita da sidra milenar e convida os apreciadores a manter a tradição: o consumo da bebida deve ser rápido, num só gole. O que sobrar no copo deve ser derramado no chão como gesto de gratidão à terra, tornando a ela parte do que foi oferecido.
Texto de Vilma Reis in Coimbra Coolectiva
Fotografia: Mário Canelas
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